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A arte marginal de uma cidade dormitório

Como Mileny está transformando a cena cultural de Mauá


Criadora do Slam ABC abre a edição de outubro | Foto: Felipe Castelani

Era cerca de oito horas da noite de uma quinta-feira quando a edição de outubro do Slam ABC começou. Comemorando o dia das crianças, o evento que acontece mensalmente na Praça do Relógio foi temático: anos 2000. Em meio a poesias, jeans de cintura baixa, decorações e doces de chocolate fracionado, o grupo de poetas regionais se preparavam para a batalha. A chamada slam master iniciou, no centro da praça, sem microfone, recitando uma poesia autoral. “Então pode me chamar de Mileny, faísca da revolução”, foi como ela finalizou antes de ser ovacionada. 


A noite, que remeteu à doçura e sonhos da infância, mostrou como a arte já fazia parte de alguns antes mesmo de realmente se manifestar. Aos três anos de idade, por exemplo, as crianças são marcadas pelo desenvolvimento de atividades motoras, na maioria das vezes, conseguem segurar um lápis e fazer algo no papel que se assemelha a um desenho. Mas, no Jardim Zaíra, uma marcava presença em cima do palco, participando da primeira peça teatral. Mesmo sem falar ou andar direito, Mileny Leme estava em cena, resultado de ter crescido em uma família ativa no teatro comunitário e artes, um ponto fora da curva para os mais de 100 mil moradores da comunidade mauaense.


Nascida na Santa Casa de Mauá, foi criada na região metropolitana de São Paulo, onde se formou como artista marginal e cidadã. Poeta, professora e atriz, a jovem de 22 anos ganhou notoriedade na cena local em 2020, após fazer um vídeo mostrando descontentamento com o prefeito da época, que disputava a reeleição. Mileny, que nunca foi muito boa em ficar quieta, tampouco concordar facilmente com pensamentos pré-impostos, define sua arte como política. Para ela, é impossível tomar isenção de algo que não tem como estar isento por interferir diretamente no seu cotidiano. Depois dessa postagem viral, a internet abriu portas para que a multiartista publicasse vídeos de poesia, se reconhecendo como protagonista de sua própria história e um ser político relevante. 


Apesar de ser o terceiro município mais populoso do ABC paulista, Mauá sofre com uma carência cultural que intervém diretamente na cena artística e underground de uma região que é "fábrica de artistas". Considerada dormitório, a cidade se baseia na política de exportação; os artistas se criam e se formam lá, mas vão para São Paulo ou municípios vizinhos em busca de oportunidades e valorização. Leme frisa que, por escassez de investimento, a cena artística da cidade segue sendo subestimada “se um lugar não te dá incentivo fiscal e cultural, você não vai ficar. Em Mauá você tem uma cidade dormitório, se entende que o produzir artístico aqui é menos relevante do que fazer em São Paulo. Vou produzir pra cá pra que? Pra não lotar teatro, não ter gente me assistindo? Não ter incentivo? Então eu vou sair mesmo. Não é errado, é triste.”


Com o fim das oficinas culturais da cidade em 2016, os artistas regionais seguiram produzindo e sobrevivendo cada um por si, sem um ponto coletivo de união. Esse desejo de uma comunidade fortalecida fez com que em fevereiro de 2024, nascesse o Slam ABC, primeiro movimento de batalha de poesia marginal de Mauá. Uma combinação de canto poético com performance, protesto e competição, Mileny conheceu sobre slam no ano anterior, o que mudou sua percepção do fazer artístico. Junto com a amiga Ana Laura, escreveu o projeto para o edital público da cidade, que foi aprovado com nota máxima e contemplado pela Lei Paulo Gustavo. "Queria que o movimento que estava acontecendo ali em São Paulo e movimentando tanta gente existisse no ABC também. Não queria que as pessoas tivessem que sair, pegar trem pra fazer algo que dá pra ser feito na nossa quebrada.”


“O slam é a principal fonte de renda de grande parte da cena que consegue pagar suas contas e viver da própria arte, e eu quero isso na minha quebrada. Foi a porta que me abriu possibilidade, quero que seja possibilidade pra onde eu moro também”, relata Mileny | Foto: Felipe Castelani

Em agosto, a batalha teve uma edição especial fora da Praça do Relógio. Os poetas ocuparam o Teatro Municipal da cidade, em uma noite de arte, apresentações e celebrações da cultura marginal. Mileny define o evento como uma reparação histórica a todos os anos que implorou para que as pessoas preenchessem o local “quantos poetas, quantas pessoas regionais que não tinham um espaço conseguiram começar a recitar e agora podem enxergar um novo processo de fonte de renda? Esse é o fomento da cultura marginal, a gente chegando, invadindo esses lugares e trazendo pra gente.”


Apesar de acumular quase 500 mil seguidores nas redes sociais com quatro anos de atividade, Leme enfrenta uma dificuldade em furar a bolha da mídia que propaga a cultura hegemônica. A poesia marginal segue sendo feita majoritariamente por uma população negra e empobrecida, que narra sobre vivências de forma que desafia a visão lispectoriana do poeta impregnado no imaginário popular como um ser intelectual e de sofrimento, “a cultura hip-hop só é aceita quando é embranquecida. A palavra marginal assusta. Assusta, porque a gente escreve com gíria, as pessoas já se afastam por não conhecer. O nome assusta, a ideia assusta, mas uma vez que vê, é uma máquina potencializadora de mudar o mundo”. Mileny comenta que a falta de investimento faz com que os artistas da cena desconsiderem o poder da visibilidade como forma de movimentação cultural. Enquanto alguns homens fazem batalha de rima que valem 200 mil reais, ela ainda aceita recitar nas escolas em troca de lanche e passagem do transporte público. 


Para ela, ser poeta vem de um lugar íntimo enquanto mulher negra, fazendo com que pudesse falar e ser ouvida pela primeira vez. Mileny reconhece que teve uma expertise ao publicar seu conteúdo na internet durante a pandemia, mas que muita coisa ainda é difícil de quebrar “só começam a dar palco quando você tem um vídeo com mais de um milhão de visualizações, se não eu sou só mais uma neguinha, só mais uma falando”. Atualmente, a artista é uma das principais referências na cena de Mauá, sendo frequentemente referenciada por abrir e dar espaço para outras mulheres negras. Ela tem consciência que sua trajetória está mobilizando a cultura local, “é muito louco lidar com isso, mas vou continuar mirando em voos maiores para que se entenda que se eu cheguei, eu estou abrindo caminho. Eu não acredito nesse lugar de referência estática, se eu estou indo é porque eu quero que venha uma banca toda!” 


"A poesia fez com que eu, pela primeira vez na minha vida, me enxergasse protagonista da minha história e não parte da história de alguém. Que eu validasse meus desejos, minha forma de enxergar o mundo e minhas opiniões." — Mileny

Em setembro, viajou para a Argentina com o coletivo independente ‘Kuadrilha Teatral’ para participar do festival de teatro ‘Vamos que Venimos’. Os custos da viagem foram arrecadados através de vaquinhas e rifas, visto que o festival não oferecia ajuda financeira. Em ano de eleições municipais, procurou prefeituras, vereadores e empresas que pudessem financiar as despesas, mas o coletivo foi ignorado. “Fiquei feliz que as pessoas se mobilizaram, mas que merda que o nosso governo não enxerga as potências que tem dentro do nosso próprio país”. Foi a primeira vez que a poeta saiu do território nacional para fazer arte “foi muito construtivo pra gente entender que é possível quebrar fronteiras que às vezes a gente não imagina que vai quebrar.”


Em novembro, representando o Slam São Mateus, foi campeã do campeonato estadual de poesia falada, Slam SP. Neste mesmo mês, lançou seu primeiro livro ‘Faísca da Revolução’, um compilado de poemas sobre resistência, dor e transformação. Para os próximos anos, ela espera, além do desmonte completo do capitalismo, conseguir realizar seu maior sonho de abrir uma escola de artes no Jardim Zaíra. Mileny quer continuar produzindo arte, propagando-a como potência para mudar o mundo e incentivando a cultura marginal “eu tenho objetivos táteis que são ampliar a voz da cena do slam no Brasil, gerar visibilidade e que os poetas consigam trabalhar. A longo prazo, quero que a arte seja um potencializador pra gente mudar esse sistema, e eu quero fazer parte disso.”


Enquanto isso, Mileny segue recitando, toda terceira quinta-feira do mês, na Praça do Relógio “arte bagunçando a cena, resistência é a meta. Pode avisar: no ABC tem poeta!”



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