'Hoje só comi um pedaço de pão': Os rostos que sofrem com a fome
- Filipe Pereira e Murilo Prado
- 16 de jan.
- 3 min de leitura
Atualizado: 17 de jan.
Em 2023, 72.090 pessoas se encontravam em situação de rua na Região Metropolitana São Paulo, segundo o CadÚnico
Por Filipe Pereira e Murilo Prado*

Na cidade de São Paulo, o sorriso no rosto de Diana de Assunção, de 55 anos, esconde marcas de um problema que atingiu 6,8 milhões de paulistas, a fome, inimiga que pode ser mais prejudicial do que apenas o vazio na barriga. Carlos, de 43 anos, habitante de São Bernardo do Campo, possui sorriso e marcas semelhantes. Além dos semblantes, ambos compartilham uma realidade em comum: a busca por alimento nas ruas e o desejo de não finalizar o dia com fome.
Os dados sobre o número de paulistas que passaram fome são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II VIGISAN), levantados entre 2021 e 2022. Diana e Carlos são algumas dessas pessoas que, apesar de serem tratadas como números, possuem histórias e memórias que a fome apaga, uma vez que as condições de moradia e alimentação podem os tornar invisíveis para a sociedade.
Letícia Prado, nutricionista, comenta sobre essa situação: “as pessoas não comem apenas quando estão com fome, mas a alimentação também é afetiva. Assim, as pessoas acabam se sentindo inferiorizadas, como se elas não fossem enxergadas pela sociedade”, tal circunstância pode gerar danos maiores: “além dos prejuízos físicos, o mental também conta bastante. Uma pessoa exposta por muito tempo a desnutrição, leva marcas para o resto da vida”, completa.
Nas marcas da fome, a nutricionista destaca que os públicos mais afetados são os idosos e crianças. Para os mais velhos, além dos danos físicos, problemas de esquecimento, demência e Alzheimer podem surgir da falta constante de alimentos. Já nos menores, por estarem no período de desenvolvimento, a lista de preocupação é maior: o surgimento de problemas de concentração no processo de aprendizagem de habilidades básicas e na escola, danos cognitivos e a falta de desenvolvimento do cérebro e do corpo são alguns dos problemas que podem ser levados para o decorrer da vida, alerta Letícia Prado.
Outra condição que afeta as pessoas em situação de insegurança alimentar é o consumo de alimentos em condições inadequadas, como o pão achado na rua por Diana. O maior risco é a contaminação por DTA (Doenças Transmitidas por Alimentos) que, para pessoas com o sistema imunológico saudável, geralmente causa as famosas intoxicações alimentares.
“Uma pessoa que já está fragilizada, que não tem um bom funcionamento do sistema imunológico, ela não consegue muitas vezes combater esse alimento contaminado que ela ingeriu. Então, não é só uma intoxicação alimentar para esta pessoa, ela já se torna um agravante, podendo atingir órgãos vitais”, comenta a nutricionista.
Por exemplo, a infecção por E. coli, bactéria geralmente encontrada em alimentos contaminados por falta de higiene, geralmente por contato com fezes, exige o tratamento por meio de antibióticos, de difícil acesso para pessoas em condição de rua. Assim, caso não tratada, a doença pode ser agravada e até levar à morte.
Na fila do Bom Prato de São Bernardo do Campo, Carlos recorre a uma das soluções propostas pela especialista, a criação de restaurantes populares, que distribuem refeições em regiões com uma maior demanda de pessoas em insegurança alimentar: “deveria ter um Bom Prato onde há uma maior concentração de público em situação de rua. Com as 3 principais refeições oferecidas, café da manhã, almoço e jantar, se atinge as propriedades nutricionais mínimas por dia”. Letícia Prado, que estagiou na rede de restaurantes, ressalta a qualidade dos alimentos e o acompanhamento nutricional aplicado nas unidades.
Já para Diana, que não possui uma unidade do restaurante próxima, a especialista sugere, como solução provisória, a distribuição de cartões alimentação, semelhante aos entregues para os alunos das escolas públicas durante a pandemia, com recargas diárias para o consumo das refeições em estabelecimentos próximos. Além disso, aponta a importância do mapeamento das regiões com maior densidade de pessoas em insegurança alimentar para a criação de novos restaurantes e enfatiza que o Bom Prato não é apenas um recurso para pessoas em situação de rua.
Enquanto tais soluções chegam apenas a uma parte da população em situação de rua, Carlos, que conta com o Bom Prato, busca o sonho da reconstrução de vida após o divórcio, quer uma oportunidade de emprego e uma casa para abrigar os companheiros caninos. E Diana continua na batalha para garantir o próprio alimento, do sonho em ver a filha em condições melhores de vida e mais uma noite ela irá dormir sem a certeza de uma refeição para o dia seguinte.
-Reportagem realizada em maio de 2024.
*Texto produzido com a supervisão da professora Vaniele Barreiros
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