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Não quero descer aqui

  • Foto do escritor: Miguel Calado
    Miguel Calado
  • 28 de mai.
  • 2 min de leitura
'Estou sentado ao lado do tempo, enquanto o trem atravessa a cidade em silêncio' | Arquivo Pessoal
'Estou sentado ao lado do tempo, enquanto o trem atravessa a cidade em silêncio' | Arquivo Pessoal

A janela embaçada revela o mundo em pedaços, como se o vidro soubesse que ver tudo de uma vez machuca. Estou sentado ao lado do tempo, enquanto o trem atravessa a cidade em silêncio. Os trilhos gritam, mas aqui dentro tudo é sussurro. O fone de ouvido derrama uma melodia que parece ter sido escrita para mim, em alguma tarde perdida, em um caderno molhado de saudade.


Primeira estação.

Desce uma senhora de vestido florido, cabelos brancos como as nuvens que se deitam no céu de inverno. Ela olha para trás antes de sair. Eu me pergunto quantos amores cabem em um olhar assim. Penso no verso que fala do céu que se abriu azul, quando tudo era tempestade. Talvez, ela tenha sobrevivido a muitas. Talvez, sorria agora porque aprendeu a dançar com o vento.


Segunda estação.

Sobe um garoto com os olhos cheios de mundo. Carrega uma mochila maior do que ele. Sorri para o nada como quem carrega segredos nos bolsos. Lembro que um dia também fui assim: mais desejo do que certeza, mais asas do que chão. A canção diz que não se sabe pousar onde o chão quer. E eu, feito o menino, nunca quis ser domado por gravidade nenhuma.


Terceira estação.

Do lado de fora, uma moça acende um cigarro encostada no pilar. Ela traga como quem chora por dentro. O vento leva a fumaça para longe, e por um segundo, ela fecha os olhos. Não sei se ora, se sente ou se apenas existe. A música fala em não se perder em um sonho qualquer. E ela, imóvel naquele momento, parece lutar para continuar acordada no mundo que insiste em adormecer quem sente demais.


Quarta estação.

Ninguém sobe. Ninguém desce. Mas há um casal na plataforma, de mãos dadas, olhos cravados um no outro como se o resto não existisse. Penso em atravessar horizontes, como canta a música. Ir além. Ser ponte. Ser abrigo. Amar com a calma de quem não teme a partida. Eles se olham como quem já se perdoou mil vezes.


Quinta estação.

Uma criança corre atrás do próprio reflexo no vidro. Ri como quem ainda não aprendeu o peso das coisas. O mundo, ali, é um jogo de luzes e formas. E eu quase choro. Porque no riso dela havia tudo o que eu perdi. E também tudo o que ainda posso encontrar.


Fecho os olhos por um instante. O trem segue. A canção também. Sinto que carrego muitos destinos nas costas, mas nenhum lugar exato para chegar. Há conforto nisso. Há leveza em não caber. Em cantar mesmo quando a voz falha. Em fazer do vento um aliado.


O céu sorri para mim, mesmo que tímido.

E eu sorrio de volta, mesmo que com lágrimas nos cílios.

Porque sei o amor de cor.

E não há labirintos no céu.


Supervisão: Profa. Rita Donato

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