Do paredão ao camarote: o funk muda de público e perde a favela
- EntreFocos

- 10 de set.
- 5 min de leitura
Atualizado: 19 de set.
Com forte presença nos eventos privados, o funk se torna mais uma vítima do processo histórico de esvaziamento que acomete as culturas periféricas
Marcela Muniz e Laura Alves
Especial para o EntreFocos
Entre as vielas da periferia, os bailes se instalam com adegas improvisadas e paredões iluminados por caixas de som potentes, que disputam espaço com carros também equipados para tocar música. Esses ambientes se transformam em um espaço de socialização e de afirmação cultural, em contraste com as festas realizadas em salões fechados, onde predominam os palcos, mesas de DJs, cobrança de ingressos e bebidas caras.
O funk, um gênero musical originalmente periférico, está em crescente ascensão e ocupa cada vez mais espaço nos bairros nobres da capital de São Paulo. Porém, cada vez menos corpos periféricos estão presentes nesses locais.

Bruno Ruiz, 37, DJ e morador de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, reflete que o funk representa, para a periferia, uma forma legítima de expressão e lazer: “Hoje o jovem da favela, principalmente através do funk, começou a ter um olhar que ele também pode”. Ele destaca que o gênero ganhou força especialmente por proporcionar à juventude periférica a oportunidade de ser ouvida e falar de seus desejos, vivências e conquistas: “O baile, quando acontece na quebrada, é positivo porque, além da música, gera empreendedorismo, uma receita financeira pras pessoas”, afirma. No entanto, fora da favela, a dinâmica muda. O olhar raso e simples sobre o funk nesses espaços contrasta a imagem do funk para a periferia, que o vê como um elemento mais complexo e profundo, que está presente em sua cultura e pode ser até um estilo de vida.
João Victor da Cruz, 24, produtor cultural e coordenador do Observatório De Olho Na Quebrada, aponta que o fato de o funk não ser visto como cultura nesses espaços nobres evidencia o seu esvaziamento. “Falta conscientização sobre a cultura do funk. As pessoas ‘de fora’ acham que pagando 150 reais no ingresso, elas automaticamente fazem parte disso, e não têm respeito com quem é dono de verdade [a favela]”. Ele aponta que o funk, ao distanciar-se de suas origens, é visto pela sociedade como um produto. O depoimento de Bruno, como DJ, complementa a visão do especialista: “O público [de fora] é totalmente diferente. Muitas vezes, é um público deselegante, porque ele te vê como um produto. Como ele está pagando, ele acha que pode fazer o que quiser”. Dessa forma, o funk se aproxima cada vez mais de se tornar um elemento da indústria, e deixar de ser o símbolo de resistência que representa para a favela.
O baile como solução para a falta de lazer para a periferia
Em pesquisa realizada pelo Observatório, João identificou que os bailes funks nas favelas são fundamentais para a juventude local: “o principal problema é a falta de oportunidades de lazer. Então, o baile é um sintoma para a falta de espaços públicos de lazer noturno para os jovens”. Em contrapartida, ele analisa que uma das motivações para que os jovens que frequentam os bailes, não frequentem os novos espaços que o funk ocupa, é o poder econômico limitado: “É caro você sair de noite e ter que pagar a entrada para uma festa, pagar o que você vai beber”.
Enquanto os eventos privados que oferecem lazer associado ao funk e consumo de álcool nos bairros mais nobres, contam com ingressos cada vez mais caros, os bailes funks funcionam em um formato que possibilita o acesso dos jovens periféricos. Isso porque a sua estrutura é composta por adegas, que comercializam bebidas e drinks a preços acessíveis, como a ‘dose de 10’, e por paredões que tocam som alto durante toda a noite, sem que o público precise pagar para poder circular no local. Assim, mesmo as pessoas em situação de vulnerabilidade e baixa renda, podem ocupar esses espaços e desfrutar dessa cultura livremente.

A repressão policial que limita o acesso da favela ao funk
Porém, os jovens da periferia enfrentam mais um obstáculo para acessar o funk, ainda que em seus próprios territórios: a repressão policial. Enquanto o funk nos bairros nobres é celebrado como entretenimento, os bailes nas favelas são constantemente interrompidos por serem associados à criminalidade.
A pesquisa “O Baile Funk em Heliópolis” do Observatório De Olho Na Quebrada, realizada no ano de 2019, apontou que 80% dos moradores já vivenciaram alguma situação de violência policial nos bailes funks. No mesmo ano, nove jovens foram mortos e doze feridos no Baile da Dz7, em Paraisópolis, durante uma das operações policiais que já eram realizadas de forma frequente nas periferias de São Paulo. O padrão de repressão se manteve quando, mais recentemente, em junho de 2024, a operação Hypnos reuniu 345 policiais militares e civis do estado de São Paulo com 53 mandados de busca e apreensão, com o objetivo de combater os bailes funks que ocorriam nas favelas.
João Victor relata que as diversas intervenções nos bailes são sempre violentas e, por isso, é gerado um tumulto e pânico nos jovens ali presentes. Essa abordagem revela a criminalização da cultura periférica e o tratamento desigual. “A repressão não é contra o funk. A repressão é contra a favela. O funk pode virar a coisa mais gourmet do mundo, mas enquanto ele acontecer na favela, será criminalizado”, conclui o especialista.
‘Uma cultura que foi muito marginalizada e hoje é viralizada’
Quando a favela perde o acesso ao funk para a classe alta, ele repete o padrão de apropriação que historicamente acomete as culturas de origem periféricas. João Victor compara o processo atual e mais recente, com o que aconteceu com o rap e o samba. Ambos gêneros que também vieram da favela, o samba e o rap sofreram com a marginalização por parte do Estado e da elite social brasileira, desde leis que criminalizavam práticas ligadas à cultura popular e afro-brasileira, como o Código Penal de 1890, até cancelamento de shows de rap sob justificativas de segurança. Esses ritmos foram criados como formas de resistência, mas só foram aceitos quando suas mensagens foram suavizadas.
Hoje, o funk vive um processo semelhante: ao se tornar amplamente consumido, muitas vezes é retirado do contexto original, enquanto os corpos da favela seguem excluídos dos espaços de prestígio. Esse padrão revela uma constante histórica em que a cultura periférica precisa ser despolitizada para que seja aceita pelas elites, gerando um esvaziamento que a torna consumível para a burguesia.
DJ Miyagi Beats: “É bem difícil porque a gente percebe como a elite brasileira e mundial se apropria de uma cultura que foi muito marginalizada e hoje é viralizada. O filho do deputado que não vem na periferia, faz uma festa no seu apartamento, tocando funk e curtindo com seus amigos. Mas a gente tem que refletir até onde isso agrega pra gente.”
*Texto produzido com a supervisão da professora Vaniele Barreiros








excelente matéria! mostra como a favela perde o acesso a algo que nasceu nela mesma e, quando resiste, sofre repressão e violência, enquanto o funk vira mercadoria nas áreas elitizadas da cidade :(
que matéria excelente e necessária!