ESPECIAL: DOI-CODI de São Paulo
- Ana Luiza Sidronio e Giullia Hartvite
- 26 de nov. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 27 de nov. de 2024

‘Mataram patriotas’ durante 20 anos
Há 56 anos, o mais rígido entre os dezessete atos inconstitucionais era decretado durante o governo do Marechal Artur Costa e Silva no Brasil, aprofundando a ditadura militar no país. Com a imposição do AI-5 e a atuação da Oban (Operação Bandeirante), foram construídos de maneira clandestina quatro edifícios que, mais tarde, seriam chamados de DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), espaços ativos utilizados para a captura e prisão dos opositores entre os anos de 1969 e 1985. O objetivo da Oban era desconjuntar grupos políticos de cunho progressista que subsistiam à época no Brasil.
O primeiro entre os prédios do DOI, localizado no bairro Paraíso juntamente ao 36º Distrito Policial, contava com três andares compostos por escadas e grandes salas onde os instrumentos de tortura eram instalados, contendo outras salas menores como uma extensão, as quais não tinham portas. Os opositores ao regime militar (políticos, jornalistas, professores, sindicalistas e minorias sociais) eram capturados e mantidos em cárcere, sob tortura física e, sobretudo, psicológica.
Imagens das instalações do DOI-CODI/SP - Fotos por Ana Luiza Sidronio e Giullia Hartvite
Submetidos a situações de humilhação e desumanização, os indivíduos eram obrigados a se despir assim que fossem despejados no local, onde seriam torturados até que entregassem seus companheiros ou quaisquer outros que fossem considerados uma ameaça pelos militares. Segundo Maurice Politi, ex-preso político do centro de tortura, o DOI-CODI foi construído pelo então prefeito em 1969, Paulo Maluf, pois a antiga instalação localizada na região do Ibirapuera poderia chamar muita atenção, já que o parque era muito frequentado por jovens e famílias, e os gritos seriam um incômodo.
Nas escadarias abafadas do DOI-CODI, o tempo parece se arrastar. Ao ouvir a descrição dos diferentes métodos de tortura por quem os viveu na pele, é quase impossível não ter a sensação de desconforto. Mesmo com as fortes falas dos participantes do Núcleo Memória, ainda assim frases como “esses instrumentos de tortura não são um tanto toscos?” ou “ainda há quem diz que a ditadura foram bons tempos” eram possíveis ouvir de visitantes.
Entre os mais conhecidos meios, estavam o pau-de-arara e a cadeira do dragão. O primeiro existe desde o período da escravidão e é utilizado por algumas delegacias de polícia até hoje, consistia em manter o indivíduo pendurado de cabeça para baixo com uma barra de ferro entre a dobra dos joelhos e punhos, causando fortes dores musculares e nas articulações; o segundo era composto por uma cadeira revestida em metal onde o prisioneiro era amarrado e submetido a descargas elétricas por todo o corpo.
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Dentre as mais de 50 vítimas torturadas e assassinadas no DOI, está o professor e ex-diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog. Formado em Filosofia pela USP (Universidade de São Paulo), iniciou sua carreira no jornal O Estado de S. Paulo, conquistando prestígio com pautas sociais. Ele foi contratado pela BBC e passou a fazer parte do quadro da TV Cultura a partir de 1972.
De camiseta vermelha, Maurice Politi; último clipe é o prédio ondeHerzog foi morto | Giullia Hartvite
Herzog passou a ser vigiado pelos militares sob suspeita de estar envolvido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi convocado a comparecer ao DOI-CODI, ao qual se encaminhou de maneira voluntária na manhã do dia 25 de outubro de 1975. No mesmo dia, aos 38 anos, Vladimir foi morto dentro das instalações do órgão de tortura onde fora emitida uma nota pelo Comando do II Exército que informava que ele havia confirmado seu envolvimento com o partido. O jornalista foi encontrado morto enforcado com uma tira de pano e segurando um pedaço de papel rasgado, onde descrevia sua participação no partido. Assim foi arquitetada a famigerada foto da falsa versão de sua morte.
Com a circulação da imagem de Herzog, a resposta da sociedade foi imediata. Diversos setores promoveram grandes manifestações, entre eles o do jornalismo, quando o Sindicato dos Jornalistas permitiu a paralisação das redações e reuniu pessoas para uma missa na Catedral da Sé. Em 1992, numa entrevista à IstoÉ, Pedro Antônio Mira Grancieri, conhecido como “Capitão Ramiro”, confessou sua participação no interrogatório de Vladimir. “Fui o único policial que interrogou Wladimir Herzog no DOI-Codi, o único a conversar com ele naquele dia. Ninguém está mais forte e diretamente envolvido na morte de Herzog do que eu.”
O espaço, hoje aberto à visitações e convertido em um lugar de memória, oferece aos visitantes uma experiência de imersão em um passado que muitos tentaram e ainda tentam apagar. Apesar disso, não é oficialmente reconhecido como um museu e local de preservação.
‘Se chama DOI, e dói mesmo, dói muito’
Imagina só ser uma jovem atriz, lutando pelas convicções de forma pacífica e acabar presa em uma casa de torturas durante a Ditadura. Esse cenário foi mais comum do que se imagina, dezenas de pessoas foram de jantar com suas famílias para pendurados em um instrumento de tortura. Não importava a classe social, a etnia e a idade, se acreditassem que tal sabia ou participava de algo considerado contra o regime militar, era levado para o que chamavam de “açougue”.
Dulce Quirino de Carvalho Muniz foi presa aos 22 anos, no dia primeiro de maio de 1970, e levada ao DOI-CODI de São Paulo. Ela fazia parte da organização PORT- Partido Operário Revolucionário Trotskista, estava em uma comemoração do Dia do Trabalhador, junto com outros 13 sindicatos, quando foi apreendida. O partido do qual participava era muito pequeno comparado com outros da época, tanto que brincavam sobre os encontros serem dentro de uma Kombi. Também eram conhecidos por não serem guerrilheiros, não pegavam em armas, mesmo assim, Dulce viu seus companheiros serem torturados e mortos.
Separados por gênero, 17 pessoas foram levadas da comemoração para a antiga Operação Bandeirantes. Junto com Dulce, se mantinham sentados nos bancos que existem até hoje no local, ouvindo os gritos dos que sofriam o inimaginável. Um por um, subiam para dar depoimentos. Na vez da atriz, o capitão Gaeta - ela não se lembra do sobrenome - a interrogou e disse: “aqui é assim, a gente prende, tortura e mata, mas você é gente boa, você é fria”.
Os militares chamavam os protestantes anti armamentistas de frios, mesmo assim o camarada Alfredo, do PORT, cujo nome real era Olavo, um estudante de engenharia, de 32 anos, que trabalhava em uma fábrica de produtos químicos no Grande ABC, foi morto por não falar onde ficava a gráfica do partido, que Dulce conta hoje que era apenas um mimeógrafo dentro da casa do militante.
Dulce Muniz recita um poema durante visita monitorada no prédio onde funcionou o DOI/CODI | Giullia Hartvite
Hoje, aos 77 anos, a ex-presa política dirige o Teatro Studio Heleny Guariba e continua à frente de projetos sobre causas diversas, principalmente políticos, incluindo o Memorial da Resistência de São Paulo. Ela usava codinomes como Natália e Márcia e foi transferida para quatro lugares enquanto estava presa, Deops/SP (Departamento de Ordem Política e Social), QR da Polícia Militar, 1º Batalhão de Polícia de Choque e por fim o DOI-CODI/SP.
‘Tinha o partido do sim e o partido do sim, senhor!’
Quatro anos foram interrompidos do projeto de vida de um jovem de 21 anos, as torturas sofridas mostram-se como marcas no seu corpo mesmo após 54 anos do ocorrido. Fazer parte do movimento estudantil e da Ação Libertadora Nacional foram o que custaram os piores dias da vida de um universitário.
Após a Guerra de Suez no Egito, Maurice Politi e sua família foram expulsos de Alexandria e chegaram na capital paulista em 1958. Refúgio não foi o que encontraram aqui, já que em 20 de março de 1970 ele foi preso pela OBAN. Passou por 6 tipos de cárceres diferentes, inclusive a antiga Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. Após cumprir a pena, Politi foi expulso do Brasil e exilado para Israel. Apenas após a Lei da Anistia, em 1980, que o retorno ao país aconteceu, com 31 anos.
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Além do DOI-CODI/SP, outros locais também eram conhecidos por torturar militantes políticos filiados a partidos clandestinos. O terceiro andar do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) foi o local onde ocorreu o que nunca será apagado das lembranças de Maurice, torturas de formas inumanas, físicas e psicológicas, não dá para decidir qual era a pior.
Ao relembrar o passado, o ex-preso político Maurice Politi explica sobre o pau-de-arara | Giullia Hartvite
ANUNCIAVAM A MORTE ANTES DE MATAR - Durante a visita ao local, por meio do Núcleo Memória, o ex-preso político conta a história de Ivan Seixas, um menino de 15 anos que foi preso com o pai, a mãe e as duas irmãs, ambas violentadas por militares. Enquanto estava pendurado no pau-de-arara, sofrendo agressões físicas, o pai pediu para vê-lo. “Se salva, meu filho”. Maurice conta que esse pedido foi feito pelo pai, nu, sentado na cadeira do dragão.
Ao fazer um acordo com os policiais, Ivan foi levado até o Viaduto do Chá para supostamente se encontrar com uma pessoa procurada da época, o que era uma “mentira” apenas para tentar fugir. Porém, a manchete da morte do seu pai estava estampada na banca mais próxima. “Eles matavam conscientemente e avisavam que matavam antes mesmo da pessoa ter sido morta”, conta Maurice.
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