'Nós ainda somos assombrados pelos fantasmas da AIDS lá dos anos 80'
- portalentrefocos
- 20 de jun.
- 10 min de leitura
64% das pessoas que vivem com HIV foram vítimas de sorofobia e 75% escondem sua condição por medo, indicou o relatório de 2019 da UNAIDS
Por Lanna Melero, Vitor Falchi, Lauryn Amaral e Raissa Neves
Especial para o EntreFocos

A sorofobia, descriminação contra pessoas que vivem com HIV, é considerada crime no Brasil desde 2014. Ainda assim, em 2019, um estudo da Unaids indicou que ao menos 64% das pessoas que vivem com HIV já sofreram sorofobia e que 75% escondem a condição por medo. Estas são consequências do estigma criado nos anos 80, que iguala o HIV à morte,
“peste gay”, impureza e promiscuidade, e que segue presente no imaginário popular, mesmo 41 anos após a identificação do vírus.
Segundo o ativista e agente de saúde David Oliveira, com a simplificação do tratamento e redução dos efeitos colaterais, o diagnóstico positivo deixou de ser uma ‘sentença de morte’, mas ainda "somos assombrados pelos fantasmas da AIDS lá dos anos 80”.
Exemplos desse estigma são pessoas que evitam beijar, ter relações sexuais e compartilhar utensílios e ambientes com pessoas diagnosticadas com HIV e isso também se reflete no comportamento das pessoas que vivem com o vírus. Elas muitas vezes evitam interações e atividades por receio de possíveis comentários e descriminação. A depender, o estigma é tão forte que gera eventos traumáticos.
É exatamente isso que aconteceu com Karen Waléria, de 57 anos, após receber o diagnóstico de HIV positivo. Ela relatou que não se recorda de nada entre receber o diagnóstico e chegar em casa, mas que não se esquece de quando um ‘amigo’ explanou seu diagnóstico para terceiros.
“Eu saí de uma festa com um rapaz e, quando chegamos na minha casa, eu disse para ele ‘Eu tinha que ter contado antes, mas vou contar agora’ e ele me disse ‘ah, se é para dizer que tu é HIV positivo, eu já sei’ [...] E quem contou para ele foi esse meu ‘amigo’. Até hoje eu não esqueço disso”. Desta forma, as pessoas sorofóbicas acreditam poder expor o estado
sorológico de pessoas que vivem com HIV sem nenhum consentimento.
Mãe de dois filhos, contraiu HIV pelo pai das crianças, que era usuário de drogas injetáveis e recebeu o resultado positivo quando o mais novo ainda era bebê. Desde o diagnóstico, é preciso relembrar toda hora para as outras pessoas que ela não é soropositiva e sim alguém que vive com HIV, além de ainda precisar quebrar alguns preconceitos.
Após ter episódios de perdas de memória por conta da meningite, Karen contou que associaram este problema ao uso de drogas, mesmo ela não sendo usuária. A suposição invadiu sua privacidade e teve como causa o preconceito a partir de sua história de contração do vírus da imunodeficiência humana.
Outro exemplo do estigma social em torno do HIV foi o vivido pelo ativista e agente de saúde David Oliveira, recebido com agressividade por sua antiga sogra por causa da condição. "Ela falou assim: 'se meu filho aparecer com qualquer coisa aqui, eu te mato" descreveu.
O estudo de 2019 da Unaids expôs que os entrevistados que sofreram sorofobia já lidaram com perda de fonte de renda, exclusão em atividades sociais e familiares e até chantagens por conta de viverem com o vírus. Além disso, no mesmo estudo, 81% dos entrevistados relataram que é difícil contar que vivem com HIV, que 75% escondem esse diagnóstico e que 36% se consideram culpados por terem adquirido a IST (Infecção Sexualmente Transmissível).
Além da visão incorreta sobre a doença, também há um preconceito sobre quem é afetado pelo HIV/AIDS. A infectologista Luiza Caracik afirmou que uma das formas de reforçar o estigma do HIV é associá-lo somente a homossexuais, profissionais do sexo e pessoas de baixa renda. "Qualquer pessoa que tem relações sexuais tem risco de ser infectada", ressaltou.
Essa noção equivocada permeia há quase meio século. Sobre a repulsa e o medo que a população geral sente em relação ao HIV e às pessoas que vivem com ele, o ativista explicou sobre a principal referência que as pessoas têm da IST: o cantor Cazuza, morto em 1990 por um choque séptico causado pela AIDS. "A gente entrega o diagnóstico e é a cara do Cazuza. Não o Cazuza cantor, Cazuza maravilhoso, o Cazuza que é poeta e está vivo. Não. É o Cazuza definhando em praça pública" reforçou o ativista.

A história do HIV e da AIDS
Em 1981, nos Estados Unidos, foi descoberto o primeiro caso de AIDS em 5 homens gays e 2 anos depois é descoberto o HIV, o vírus que a causa. Nesse intervalo, diversas discussões surgiram na comunidade médica estadunidense sobre a nomeação dessas novas infecções e uma era para nomeá-la de GRID (Gay Related Immune Deficiency, que traduzido se torna "Imunodeficiência Gay").
À época, a infecção era popularmente chamada de "praga gay"; ou "câncer gay", atribuindo um valor de promiscuidade e impureza a ela. Além disso, um valor de pecado foi as noções religiosas se somavam aos preconceitos da época, com abordando a doença como "a ira de Deus", o que colocou também um valor de pecado.
Segundo David, o papel da Igreja, que deveria ser de acolhimento e compreensão, foi de repressão e negação dos tratamentos, alimentado pelo tabu da sexualidade no meio religioso. Ele chegou a citar uma frase de Dráuzio Varella para reforçar que a Igreja "teve e continua tendo um papel criminoso relacionado ao HIV e à AIDS". "Eu perdi várias pessoas que eu conheci, que eu tentei acolher, por conta dessa culpa cristo judaica", desabafou. O preconceito também se estabeleceu por causa da forma preconceituosa de noticiar casos de AIDS e HIV adotados pelos meios de comunicação.
A alta taxa de mortalidade da doença, quando recém descoberta, também foi um dos principais fatores para a divulgação dela, o que provocou uma imagem fatalista sobre o vírus. A taxa de letalidade do HIV era de 95,5%, mesmo com tratamento, durante o período de 1981 a 1987 segundo artigo publicado pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças estadunidense.
Nesse período, a mídia repercutiu a ideia de um vírus altamente letal e, no decorrer dos anos, tratamentos mais eficientes reduziram a mortalidade da HIV/AIDS. No entanto, a mídia não noticiou o progresso na mesma proporção que divulgou as diversas mortes causadas pela IST. “Eu brinco que a gente tem trabalho no dezembro vermelho e em época de parada gay, ou carnaval às vezes, porque a gente ainda tem a mídia falando sobre HIV e AIDS somente nesse momento”, comentou David.
O combate ao estigma
O mesmo estudo da ONU revelou que 15,3% das pessoas entrevistadas relataram discriminação por parte de profissionais de saúde pelo fato de viverem com HIV ou AIDS. “Os profissionais de saúde, que entregam o diagnóstico positivo, reagente para o HIV, não entregam o resultado reagente para vida, mas sim reagente para a morte”, criticou David. A sensibilidade na hora de comunicar o resultado é crucial. “Não se trata apenas de acolher a pessoa naquele momento, mas sim uma vida toda”, ressaltou.
Para Luísa e David, a informação e a educação de qualidade desempenham um papel importante no combate ao estigma em torno do HIV. “Quebrar o estigma pode ser muito difícil, às vezes as pessoas já possuem um preconceito internalizado”, comentou o infectologista. Nesse sentido, David enfatizou: “Falar sobre o HIV com pessoas que não possuem informações é válido, porque se a informação não chega, é porque não corremos atrás [...] é essencial manter a esperança e investir na educação da sociedade, promovendo um futuro mais inclusivo e consciente".
Embora o mês de dezembro seja tradicionalmente associado à conscientização sobre o HIV, o ativista chamou a atenção para a cobertura sazonal do tema na mídia. “Em dezembro, a mídia se propõe a falar sobre prevenção, o que ajuda a naturalizar o HIV”, afirmou. No entanto, ressaltou que a conscientização precisa ir além de datas específicas para promover mudanças significativas na sociedade.
O HIV deve ser enfatizado e tratado com naturalidade, é preciso sempre reforçar a importância de combater o preconceito e promover a conscientização. "Quanto mais cedo as pessoas se testarem e utilizarem métodos de prevenção, maior será a possibilidade de vislumbrarmos um futuro sem", complementou Luísa.
Superação: Como pessoas que vivem com HIV enfrentam os desafios do estigma
Apesar de todos estes desafios decorrentes da sorofobia, muitas pessoas conseguem enfrentar o estigma que as cercam. Para isso, o apoio de amigos, familiares e do ambiente de trabalho, juntamente com o acesso à informação de qualidade, atendimento médico empático e o acolhimento de outras pessoas que vivem com HIV, é importante durante todo o processo de superação.
Após a experiência traumática de recebimento do diagnóstico positivo, Karen Waléria escondeu que vive com HIV por 19 anos por causa do ressentimento. Atualmente, ela intensificou os cuidados consigo mesma, passou por cima do estigma e está há 10 anos sem esconder sua condição. “Hoje falo abertamente sobre isso e falo na internet também. Eu não estou nem aí”, expressou. “Antes eu era muito desleixada (com o tratamento) por trabalhar demais, mas agora a minha prioridade é a minha saúde, porque se eu ficar doente ninguém vai trabalhar por mim”, reforçou.
Mesmo sem recorrer a grupos de apoio, Karen falou que o acolhimento familiar e do trabalho a fez perceber que todo o receio não era necessário e que não estava sozinha. “Meus amigos compartilhavam coisas comigo, mas eu ficava na defensiva. Então, eu vi que as pessoas não estavam com todo aquele preconceito, que na verdade eu é quem tinha.”, disse. “Eu trabalho com pesquisa há 26 anos e eu tinha um baita de um suporte da minha supervisora”, relembrou.
Muitas pessoas que vivem com HIV encontram nos grupos de apoio e no ativismo uma saída, principalmente em casos em que as pessoas não possuem acolhimento afetivo, estão em vulnerabilidade social ou são fortemente rondadas pelo preconceito. Segundo a “Rede nacional de pessoas vivendo com HIV e AIDS”, os grupos de apoio são uma forma de dar visibilidade e acolhimento às pessoas que vivem com HIV e AIDS, que antes se escondiam para morrer e hoje se mostram para viver. Sendo por este motivo que, de acordo com o estudo de 2019 da UNAIDS, cerca de 85% dos entrevistados faziam parte de algum grupo de apoio.
Estas redes, como o Grupo de Incentivo à Vida e o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, também informam corretamente a sociedade sobre o assunto, educam para prevenir e promovem pesquisas acerca da pandemia de HIV e AIDS.
David Oliveira, que mesmo com o apoio familiar, apresentou muitas dificuldades para lidar com o tabu e entender sobre sua nova condição, mas ao ter contato com o movimento social se viu não mais como um “número na estatística”, mas sim como “alguém”. “Eu consegui virar a chavinha de entender que meus antirretrovirais são doses de vida, que são milagres também. É cura, é saúde, é um processo para uma vida plena”, desabafou.
Foi dentro do CRT (Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP) que ele conseguiu se informar sobre o HIV e a AIDS e receber um acolhimento que o fizesse sentir melhor consigo mesmo. “Estava saindo do estado de AIDS, pesando 45 kg, e no movimento social o meu olho brilhou de ver um monte de gente reunida se importando com a temática. E eu falei assim: ‘caraca, eu estou vendo sentido’ e isto me trouxe uma dignidade humana”, afirmou.
Hoje em dia, David trabalha em favor da causa e ajuda pessoas diariamente, seja online ou presencialmente. Ele afirmou que muitas vezes recebe pessoas inicialmente preocupadas, mas que após o acolhimento passam a viver uma vida normal. “Eu passei o domingo todo no telefone tentando impedir um rapaz de se jogar do prédio por estar com medo de se testar e ter HIV”, expôs. O rapaz acabou testando positivo, recebeu auxílio do movimento e hoje se encontra em ótimo estado.
As conquistas do ativismo brasileiro também são peças chave no processo de superação por seu importante papel na criação de políticas públicas favoráveis às pessoas que vivem com HIV e fiscalização da atuação do poder público. Como consequência, há a melhoria da qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/AIDS e do entendimento social sobre o vírus (HIV) e a doença (AIDS).

Apesar disso, o ativista alertou que em muitas regiões do Brasil, e até mesmo em São Paulo, o ativismo ainda não avançou o suficiente.” A gente precisa que o movimento social se renove para que, enquanto houver AIDS, a gente esteja lutando para que o tratamento chegue para todo mundo de forma equalitária”, complementou.
O progresso na qualidade de vida de quem vive com HIV
Durante os anos 80 e parte dos anos 90, o HIV e a AIDS representavam uma ameaça devido à alta taxa de mortalidade, no entanto, atualmente essa perspectiva fatalista não tem mais validade. Com os avanços das formas de tratamento e de prevenção, quebra de patentes e do barateamento das medicações que vêm acontecendo nos últimos 43 anos, cuidar do HIV se tornou bem mais acessível, mesmo sendo um processo que demorou a chegar.
A doutora Luísa Caracik contou que houve uma lacuna entre os anos de 1981 e 1996, quando finalmente foi desenvolvida a primeira forma de tratamento eficaz para o HIV/AIDS, a terapia antirretroviral (TARV). “Por isso, muitas pessoas morreram por muito tempo, por não haver um tratamento específico”, explicou.
Entretanto, o tratamento não era acessível. "Como são medicações caras até hoje, o tratamento não era dado para todos. Inicialmente, só (eram tratadas) as pessoas de baixa imunidade, que de fato tinham AIDS", afirmou a médica. Além da barreira econômica, os primeiros tratamentos tinham diversos efeitos colaterais, o que interferia diretamente na continuidade da TARV.
Karen Waléria relatou ter notado essa dificuldade em manter o tratamento, que dependia da AZT (azidotimidina), uma medicação antirretroviral. “Muita gente, até o meu ex-companheiro, não se adaptou ao tratamento. Ele tentou fazer um pouco e parou porque o AZT dava muito enjôo”, expôs.
Tanto Luísa quanto David reforçaram que o tratamento do HIV/AIDS se tornou muito menos nocivo e mais acessível. Os medicamentos são distribuídos majoritariamente pelo SUS e, mesmo com alguns efeitos adversos, são comparativamente bem menos nocivos ao corpo. "Hoje a gente tem tratamento simplificado, que são somente duas drogas: o dolutegravir e a lamivudina. Isso já foi uma conquista gigantesca", declarou o ativista.
Houve também desenvolvimento de melhores formas de prevenção para o HIV. Em conjunto com o preservativo, que sempre foi a forma mais conhecida de se prevenir de ISTs, existe a profilaxia pré-exposição (PrEP) e a profilaxia pós-exposição (PEP). Essas duas medicações servem apenas para proteger o corpo da exposição ao HIV, então não são substitutas do
preservativo.
A PrEP é um comprimido que deve ser tomado de 2 a 24 horas antes de uma relação sexual (ou outra situação de potencial exposição) e, após isso, tomar mais 1 comprimido por 2 dias no mesmo horário. Caso o indivíduo esteja sempre muito exposto ao contágio, é recomendado que tome comprimidos diariamente. A PEP deve ser utilizada até no máximo 72 horas após uma possível exposição. Por causa delas, a cidade de São Paulo teve redução de 54% de casos de HIV nos últimos 7 anos, segundo dados da Prefeitura.
Mesmo com os avanços técnicos na TARV e nos métodos de proteção contra o HIV, o estigma permanece e ainda traz angústia e medo. David Oliveira, como ativista e educador, realiza a função de entregar diretamente o resultado de testes para tranquilizar as pessoas nesse momento de fragilidade.
Como o estigma está presente na sociedade, os médicos não estão de fora. Alguns profissionais que não estão atualizados nos tratamentos da HIV/AIDS podem manter preconceitos sobre o resultado positivo e interferir no modo como tratam a pessoa que recebeu o diagnóstico positivo, no entanto, Luísa Caracik alertou que esta não deve ser uma noção generalizada. "Acho que tem profissionais muito bem informados, mas entendo também que existe um processo de massificação do tratamento, onde eles passam a ver o paciente mais como um número e não como uma pessoa", pontuou.
Supervisão: Profa. Vaniele Barreiros
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